quinta-feira, 13 de maio de 2010



Autos: 000000000
Autor: Ministério Púbico
Réu: xxxxxxxxxxxx
Estupro e atentado violento ao pudor. Conflito entre o depoimento de uma das vítimas e a prova pericial. Aplicação do princípio “in dubio pro reo”. Segunda vítima menor de 14 anos à época. Aplicação do artigo 217-A, do Código Penal. Presunção de inocência. Art. 5º, LVII, da Constituição Federal. Réu primário, bons antecedentes, atividade profissional e endereço certo. Ausentes os pressupostos para a prisão cautelar. Apelo em liberdade. Possibilidade admitida pelo STF.
O Ministério Público da Bahia, por intermédio do Promotor de Justiça em exercício nesta Comarca, ofereceu DENÚNCIA contra xxxxxxxxxxx, qualificado nos autos, sob acusação da prática dos crimes previstos nos artigos 213, 214 c/c art. 71, todos c/c artigo 224, alíneas a e c, todos do Código Penal, em relação à vítima A, e art. 214 c/c o artigo 71, todos c/c o artigo 224, alíneas a e c, todos co Código Penal, em relação às vítimas B e C. Consta da Denúncia que o acusado teria se aproximado da vítima A e a levou para um galpão na Rua D, nesta cidade, onde manteve conjunção carnal e a desvirginou, praticando por várias vezes o mesmo ato em outras ocasiões; que em seguida também se aproximou das vítimas B e C, com as quais manteve coito anal por diversas vezes. Defesa prévia às fls. 47 a 50. Laudos periciais às fls. 53 a 58. Em audiência de instrução e julgamento, foram ouvidas as vítimas e testemunhas (fls. 65 a 79. Em alegações finais, o Promotor de Justiça requereu a condenação do réu nos termos da Denúncia. De sua vez, a defesa, em alegações finais, requereu a absolvição do réu.
Brevemente relatado, passo a decidir.
I – As provas
O acusado confessou que manteve relação sexual consentida com a vítima A por várias vezes, negando a prática do ato com as demais vítimas (fls. 67).
De sua vez, a vítima A relatou que manteve relações com o réu, mas sem o seu consentimento e sob ameaças. As demais vítimas relataram que fizeram sexo anal e oral com o réu, também sob ameaças.
As testemunhas nada acrescentaram além de informações sobre o comportamento do réu.
A prova pericial, consistente nos laudos de fls. 53 a 58, com relação às vítimas B e C, constatou a existência de “hímen normal íntegro e ânus sem escoriações.” De outro lado, com relação à vítima A, constatou-se a ocorrência da gravidez e ânus sem escoriações.
II – Os conflitos
Há que se resolver, portanto, dois conflitos: (i) o depoimento pessoal de B e C em confronto com a prova pericial e (ii) a contradição entre os depoimentos do réu e da vítima com relação ao consentimento. Antes disso, com relação à vítima A, há que resolver acerca da possibilidade do consentimento em face da idade da vítima à época dos fatos.
Vamos lá.
a) Supremacia do depoimento pessoal ou, na dúvida, favorecer o réu?
Desde há muito, os Tribunais tem entendido que em casos de crime contra a liberdade sexual deve-se valorar sobremaneira o depoimento da vítima, pois o crime quase sempre não é presenciado e a vítima, portanto, não teria interesse em depor contra sua própria reputação.
Neste caso, no entanto, a prova pericial não comprovou a ocorrência do desvirginamento ou qualquer tipo de lesão no ânus das vítimas B e C. Evidente que a prova pericial não poderia constatar outros tipos de atentado violento ao pudor, a exemplo do sexo oral.
Pois bem, como resolver, então, o conflito entre a informação das vítimas e a prova pericial?
Neste caso, em face do princípio da presunção da inocência e do princípio “in dubio pro reo”, reforçados pela prova pericial, entendo que a dúvida favorece ao réu e não há como lhe imputar o fato do cometimento de atentado violento ao pudor – sexo anal – contra as vítimas B e C.
Por fim, sem evidência da prova pericial do desvirginamento e do sexo anal, também há como se admitir a prática de outros tipos de atentado violento ao pudor apenas com base nos depoimentos das vítimas.
Sendo assim, em face da dúvida e dos princípios da presunção da inocência e do “in dubio pro reo”, a possibilidade de solução do conflito entre as provas colhidas, a meu ver, deverá ser pelo acolhimento da prova pericial em detrimento dos depoimentos das vítimas.
b) Consentimento da vítima ou presunção da violência?
De outro lado, com relação ao segundo conflito, envolvendo os depoimentos da vítima A e do réu, ressalte-se, de início, que a vítima A conta atualmente com 14 anos e a primeira relação sexual com o réu teria ocorrido quando contava ainda com 13 anos de idade. Na verdade, a vítima A, apesar da pouca idade, demonstrou conhecimento e amadurecimento sobre questões relacionadas ao sexo, mas em determinados momentos demonstrou que se rendeu ao réu por medo ou por dinheiro, dada sua condição social.
Neste caso, em que pese o nível de conhecimento demonstrado pela vítima quando ouvida por este juízo, presume-se a violência, conforme disposto no artigo 224, a, do CP, à época do crime. Mais que isso, a conduta do réu em oferecer dinheiro e vantagens à vítima, aproveitando-se da sua condição social, também merece reprovação e repúdio.
Tem-se, portanto, considerando-se apenas a legislação vigente à época do fato, que o réu teria cometido, sem dúvidas, os crimes previstos nos artigos 213 e 214, c/c 224, do Código Penal, ou seja, estupro e atentado violento ao pudor com presunção de violência.
III – Conclusão
A Lei nº 12.015/09 estabeleceu novos conceitos para os crimes contra a liberdade sexual, dando nova redação ao artigo 213 e revogando o artigo 224, do Código Penal. Em contrapartida, criou o artigo 217-A para agrupar a conjunção carnal e o ato libidinoso na mesma figura, ou seja, o estupro de vulnerável. (Art. 217 – A - Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos.)
Ora, dispõe o artigo 5º, XL, da Constituição Federal, que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
Neste caso, afastada a acusação da prática de crimes sexuais contra as vítimas B e C, torna-se mais benéfico ao réu, sem dúvidas, a capitulação na única figura do artigo 217-A com relação a vítima A. Caso contrário, poderia ser incurso nos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor com presunção de violência em face da idade da vítima, conforme redação antiga dos artigos 213, 214 e 224, do Código Penal.
IV – O julgamento
Isto posto, por tudo o mais que dos autos consta JULGO PROCEDENTE, em parte, a Denúncia para condenar o réu xxxxxxxxxx como incurso nas penas do artigo 217-A, do Código Penal Brasileiro em que figura como vítima A.
Em consequência, pelos motivos já expendidos, diante da contradição entre o depoimento pessoal das vítimas e o laudo pericial, em face do princípio da presunção da inocência e do “in dubio por reo”, ABSOLVO o acusado da prática dos crimes que lhe foram imputados com relação às vítimas B e C.
Passo, portanto a dosar a pena.
O réu é primário, nunca delinquiu, tem bom comportamento social, atividade profissional, endereço certo e não se pode dizer, portanto, que tenha personalidade voltada para o crime. As circunstâncias e conseqüências são compatíveis com o tipo, apesar do estado de gravidez, cuja paternidade deverá ser esclarecida com o exame de DNA ou reconhecimento espontâneo pelo réu.
Fixo a pena base, portanto, em 08 (oito) anos de reclusão, que torno definitiva na falta de causas de aumento ou diminuição, atenuantes ou agravantes.
A pena terá regime inicial semi-aberto e será cumprida na Colônia Penal de Simões Filho-Ba., conforme disposto no Provimento 08/2008, da Corregedoria Geral da Justiça.
V – O apelo em Liberdade
O réu foi preso em flagrante no dia 21 de abril de 2009 e nesta condição se encontra até a presente data, justificando-se o lapso entre a prisão e o julgamento (mais de 04 meses) em face da inexistência de Juiz titular da Vara Crime desta Comarca, que sequer foi instalada depois de assim previsto na Lei Estadual nº 10.845, de 27 de novembro de 2007. Absurdamente, portanto, esta Comarca de Conceição do Coité – Ba., de entrância intermediária, funciona (?) com um Juiz em jurisdição plena!
Pois bem, em julgamento recente, o Supremo Tribunal Federal aplicou com vigor a principiologia constitucional em relação à presunção da inocência prevista no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, ao decidir que o postulado constitucional da presunção de inocência impede que o Estado trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível.
Neste sentido, conforme o entendimento do STF, somente a prisão cautelar, devidamente justificada e por absoluta necessidade, poderá justificar a segregação do acusado antes do trânsito em julgado definitivo da sentença condenatória. De outro lado, também tem entendido o Supremo Tribunal Federal que a prisão preventiva não pode ser utilizada como instrumento de punição antecipada e, mais ainda, que o clamor público, a gravidade em abstrato do crime ou o resguardo da credibilidade da Justiça, por si só, também não justificam a prisão cautelar.
"HABEAS CORPUS" - PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COM FUNDAMENTO NA GRAVIDADE OBJETIVA DO DELITO, NO CLAMOR PÚBLICO, NA SUPOSTA OFENSA À CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES E NA CONJECTURA DE QUE A PRISÃO CAUTELAR SE JUSTIFICA PARA CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL - CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL - UTILIZAÇÃO, PELO MAGISTRADO, NA DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA, DE CRITÉRIOS INCOMPATÍVEIS COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - SITUAÇÃO DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO CONFIGURADA - AFASTAMENTO, EM CARÁTER EXCEPCIONAL, NO CASO CONCRETO, DA INCIDÊNCIA DA SÚMULA 691/STF - "HABEAS CORPUS" CONCEDIDO DE OFÍCIO. A PRISÃO CAUTELAR CONSTITUI MEDIDA CAUTELAR DE NATUREZA EXCEPCIONAL. - A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. - A questão da decretabilidade da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes. A PRISÃO PREVENTIVA - ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PUNIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. - A prisão preventiva não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, com o instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. A GRAVIDADE EM ABSTRATO DO CRIME NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. - A natureza da infração penal não constitui, só por si, fundamento justificador da decretação da prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes. O CLAMOR PÚBLICO NÃO BASTA PARA JUSTIFICAR A DECRETAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR. - O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. - O clamor público - precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) - não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu. Precedentes. A PRESERVAÇÃO DA CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES NÃO SE QUALIFICA, SÓ POR SI, COMO FUNDAMENTO AUTORIZADOR DA PRISÃO CAUTELAR. - Não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato excepcional da prisão cautelar, a alegação de que a prisão é necessária para resguardar a "credibilidade da Justiça". AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE DECRETAR-SE A PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE. - Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão preventiva. O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL. - A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível - por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes conseqüências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.
HC 96095 / SP - SÃO PAULO - HABEAS CORPUS - Pcte: Jeremias Venâncio Domingues - Relator: Min. CELSO DE MELLO - Julgamento: 03/02/2009 - Órgão Julgador: Segunda Turma – Publicação: 13.03.2009
Sendo assim, afastada a justificativa da prisão preventiva pelo clamor público, pela gravidade em abstrato do crime ou para resguardar a credibilidade da Justiça, restariam as hipóteses do artigo 312, do Código de Processo Penal, ou seja, como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.
Ora, encerrada a instrução e condenado o réu, não há como se cogitar das hipóteses da conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal. Da mesma forma, em face do tipo penal, não há que se falar em garantia da ordem econômica e, por fim, restou provado que o réu não representa uma ameaça à ordem pública desta cidade.
Considerando, por fim, que não subsistem motivos para decretação da prisão cautelar do réu e considerando que é primário, tem bons antecedentes, atividade profissional definida e endereço certo, determino que se expeça o Alvará de Soltura para que apele em liberdade.
Aguarde-se, portanto, o trânsito em julgado definitivo da sentença para adoção das providências necessárias ao cumprimento da pena.
Custas, em havendo, pelo condenado.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Conceição do Coité, 03 de setembro de 2009
Bel. Gerivaldo Alves Neiva
Juiz de Direito

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